sexta-feira, 5 de agosto de 2011

"Alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo"

O agrimensor K. chega a uma aldeia coberta de neve e procura abrigo num albergue perto da ponte. O ambiente sombrio e a recepção ambígua dão o tom do que será o romance. No dia seguinte o herói vê, no pico da colina gelada, o castelo: como um aviso sinistro, bandos de gralhas circulam em torno da torre. O personagem, K., nunca conseguirá chegar até o alto, nem os donos do poder permitirão que o faça. Em vez disso, o suposto agrimensor mesmo a esse respeito não há certeza busca reivindicar seus direitos a um verdadeiro cortejo de burocratas maliciosos, que o atiram de um lado para outro com argumentosque desenham o labirinto intransponível em que se entrincheira adominação. O castelo Fausto do século XX consolidado como um dos pontos mais altos da ficção universal mostra a extensão completa do termokafkiano.

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Já se disse que os homens suportam qualquer sofrimento,desde que saibam que terá fim; o efeito da tortura parece tantomaior, mais eficaz, quanto mais se convence o torturado de queaquele momento de dor não é apenas o presente, mas todo o futuro. A literatura de Franz Kafka pode ser lida também assim:como representação desse estado mental em que um sofrimentodesagrega a noção de tempo e põe em seu lugar uma duração ade um presente contínuo gerado pela certeza de que a repetiçãoindesejada instalou-se como lei impossível de burlar. Na acepçãomais corrente,kafkiano,para nós, tornou-se o enredo (literário ounão) que não acaba de oprimir; uma situação kafkiana é o que é,para sempre, e nenhuma pergunta sobre sua natureza pareceatingi-la no centro. Kafka morreu em 1924, um mês antes de completar 41 anos.Escreveu Ocastelo em 1922, em cerca de seis meses. Não se saber por quê, suspendeu a escrita no meio de uma frase: "Ela estendeu a K. a mão trémula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse". Não há como não ver essa incompletude gramatical como imagem da própria literatura kafkiana. Lendo Kafka à luz de Kafka,parece desnecessário ou impertinente devanear sobre a seqüência, pois ela está inscrita em todas as páginas anteriores: K., o suposto agrimensor, não alcança o castelo. Não se desenreda e é esse oseu presente contínuo.
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No posfácio, Modesto Carone cita uma anotação de Kafka:"Alguns livros funcionam como uma chave para as salas desconhecidas do nosso próprio castelo". A literatura kafkiana é mais dura. Povoada de seres emparedados, parece afirmar que as salas desconhecidas assim permanecerão.

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