terça-feira, 9 de outubro de 2012
Viagens pela Escrita - "A Comissão das Lágrimas", António Lobo Antunes (...
V I A G E N S = P E L A = E S C R I T A
(Espaço para os livros na Rádio Periquito)
"A Comissão das Lágrimas" -- António Lobo Antunes - (Nº 18 (I))
(I)
Há uns tempos que trazia fisgada a ideia de falar da minha devoção pela escrita deste romancista que eu considero um dos mais geniais da literatura portuguesa.
Assumido assim, sem mais desculpas ou subterfúgios.
Esta declaração prévia deixa-me, porém, a obrigação de uma advertência a quem nunca se expôs à violência da escrita de Lobo Antunes. Os seus livros deviam sair com "bolinha encarnada" e aviso de "não aconselhável" a leitores facilmente impressionáveis ou com tendências depressivas.
Sei que há muito boa gente (refiro-me a leitores experientes e bem documentados) que nem o suportam. Da mesma forma que tem seguidores indefetíveis, espalhados por mais de cem países, sempre na expectativa de que saia o seu próximo romance.
Também seria injusto que alguém deixasse de ler as suas obras, influenciado pela sua personalidade pouco consensual. Os seus discursos, palestras e entrevistas podem deixar uma imagem de distância, alheamento ou até arrogância. Num minuto pode parecer-nos tudo isso e no minuto seguinte deixar-nos pensamentos de profunda sabedoria. Será esse o destino dos génios?
Esta obra chegou-me às mãos como "bónus"; e não é por me ter sido oferecida, mas porque foi escrita depois de ter andado no ar a ameaça de que o anterior romance seria o último. O próprio tema de "Sôbolos Rios que Vão" parecia indiciar isso mesmo.
É todo ele arrancado da memória de uma desintegração física e psíquica e muito próximo de circunstâncias pessoais do autor; um arrastar-se penoso do protagonista, nos últimos dias de uma luta por umas golfadas de ar que lhe permitam atravessar a noite e atingir consciente a manhã de mais um dia.
A narrativa vai escorrendo de lembranças cada vez mais diluídas, até desaparecerem aos poucos, num caudal de sensações de um acabar lento.
Neste último romance, que ponho em título, mantendo a abordagem a uma situação terminal, leva a sua personagem narradora de volta a África, donde tudo partiu, tanto na vida dela (personagem) como na obra do autor.
É, de facto, permanente o fascínio de Lobo Antunes por Angola, que conheceu a partir da mobilização para a guerra colonial.
Foi através da leitura de "Os Cus de Judas", uma das suas primeiras publicações, que me apaixonei pela escrita deste autor. Com ele pinta-nos de forma magistral e na sua original forma de contar, a imagem de absurdo dos dias de quem viveu essa guerra.
Depois, a maioria dos seus romances acompanha o percurso dos que, fugindo de lá, por cá se perderam, num mundo que não conheciam e também os não reconhecia.
De uma forma uma pouco simplista, diria que se pode refazer a história da descolonização portuguesa através dos romances de A. L. Antunes.
Talvez não fosse a forma mais fidedigna de conhecer essa fase da nossa história, mas seria, certamente, a mais emocionante.
A partir de um dos seus últimos romances, não me recordo bem qual, o autor introduz na narrativa uma originalidade que desorienta quem estiver menos familiarizado com sua escrita: as personagens entram em diálogo com o escritor, intrometendo-se-lhe na escrita e fazendo dele o seu porta-voz. Nesta última obra o diálogo desce até à sugestão do uso de palavras e expressões, como se o autor precisasse do apoio das personagens que criou para aguentar a dureza das imagens que lhe cintilam na mente.
Porque me deixei embalar pelas minhas reflexões e já me alonguei demais, vou deixar o resto da análise deste romance para uma próxima oportunidade.
V I A G E N S = P E L A = E S C R I T A
(Espaço para os livros na Rádio Periquito)
"A Comissão das Lágrimas" -- António Lobo Antunes - (Nº 18 (II))
(II)
Voltemos então à análise de "A Comissão das Lágrimas".
Há romances para serem lidos percorrendo as páginas, voltando as folhas; a escrita de Lobo Antunes tem de ser absorvida linha a linha, uma palavra de cada vez, porque em cada expressão há algo de belo, mesmo que, muitas vezes, horrivelmente belo.
Queria escolher uma frase ou uma expressão que espelhassem o brilho, a cor, a força das palavras do escritor; desisti porque me perdi no meio delas, incapaz de uma escolha, sem coragem de rejeitar as outras. Também porque faria mais sentido transcrever páginas inteiras e não tenho espaço para tanto.
A escrita é a dele, única e original. Fabulosa nas imagens, brilhante nas palavras, genial nas descrições.
Tem como tema a reconstituição dos primeiros anos da guerra civil em Angola, através de recordações enterradas e inconfessáveis, exumadas em acessos de loucura de quem as viveu alternadamente de um e outro lado da violência absoluta -- num dia carrasco, no outro vítima.
Chocamos com toda a bestialidade da guerra em frases de dor e sangue, repetidas, marteladas, modificadas até à exaustão e de que o leitor não consegue escapar. E que nos esmagam até à pergunta sem resposta: até onde se pode descer o abismo da degradação para negociar a própria vida?
Mais do que uma obra pensada para ser lida e comentada, trata-se de uma caminhada sobre arestas vivas que só magoando-nos podemos entender.
Pode não ser a visão mais conhecida dos últimos dias da fuga de Angola em pânico total, mas é muito próxima da memória dos que têm medo até de os recordar.
O percurso de vida de uma das personagens principais pode resumir-se assim:
- "Passou uma mulher não foi Carlos?
- É a filha do padre a maluca que fala sozinha."
Esse padre é preto, casado com uma branca. Os três, fugitivos da guerra civil de Angola, largados à deriva num Portugal que nenhum conhece.
Por ter lido praticamente todos os livros de António Lobo Antunes, sinto-me autorizado a dar umas dicas a eventuais leitores, ainda não familiarizados com a sua escrita.
Os seus romances mais extensos, publicados entre 1980 e 2009 ("Fado Alexandrino", "O Manual dos Inquisidores", "Não Entres Tão Depressa . . .", "Ontem não te vi . . . ", etc.) exigem maior atenção e mais vagar na leitura, pela complexidade da narrativa, pelo entrecruzar de várias personagens e pela sobreposição de tempos diferentes.
Os primeiros, em especial "Os Cus de Judas"e os dois últimos ("Sôbolos Rios que Vão" e "A Comissão das lágrimas"), seguem-se mais facilmente, sem risco de nos perdermos. Cada um fará a escolha que lhe der mais jeito.
Até onde irá a criatividade e imaginação deste romancista? Na esperança de que continue a escrever e publicar, vou esperar para ver.
Atrevo-me a deixar um vaticínio, por muito descabido que hoje pareça. Também não me farão pagar por perder a aposta se falhar, que não estarei cá para a cumprir.
António Lobo Antunes não será, seguramente, um "Nobel da Literatura"; o único assento disponível para as letras portuguesas foi antecipada e sub-repticiamente ocupado por José Saramago. Porém, acredito que a história não deixará de lhe fazer justiça, considerando-o, a par de Gabriel Garcia Marquez e poucos mais, como um dos maiores vultos da literatura do seu tempo.
Banda Sonora: Aesthesys -- "Limbo"
Banda Sonora: Vivaldi - "Nulla in mundo pax sincera"
© José Dias & Rádio Periquito 2012
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