sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Janela da Alma - Documentário
http://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg
Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho. Janela da Alma apresenta 19 pessoas com diferentes graus de miopia com diferentes graus de deficiência mental - da miopia à cegueira total - que narram como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo.
http://video.google.com/videoplay?docid=1046435147561692538#
http://pt.shvoong.com/entertainment/movies/2176037-janela-da-alma/
Espelho do mundo
"A primeira impressão que surge ao assistir os minutos iniciais de Janela da Alma, documentário de João Jardim e Walter Carvalho, é que é um filme sobre o ato de ver, sobre a visão, e sobre como determinadas pessoas que possuem algum tipo de problema na acuidade visual a encara. Não está errado. No entanto, o filme propõe mais. Janela da Alma propõe também um debate abstrato e poético sobre o tema. O documentário não se resigna a tratar da visão (ou da falta dela) a partir de um lado pessimista ou limitador do que é o enxergar. É por esse motivo que o primeiro depoimento apresentado é o de Hermeto Pascoal, músico multinstrumentista. Hermeto Pascoal não consegue fixar os olhos em um único objeto. Suas pupilas se mexem ininterruptamente em diferentes direções, o que o faz descrever com bom humor, que sua vista é rica, porque enxerga mais.
Em depoimento seguinte, o escritor José Saramago, nobel por seu livro Ensaio sobre a Cegueira, continuará recortando o tema de Janela da Alma. Para Saramago, a visão limitada do homem o faz ser como é. Ele faz uma parábola e imagina que se Romeu tivesse os olhos de falcão, provavelmente não se interessaria por Julieta, já que ele enxergaria muito mais defeitos do que o olho humano é capaz de fazê-lo.
Assim, o filme de Jardim e Carvalho, embora não negue em determinados momentos uma investigação mais banal sobre o tema, se aprofunda em uma discussão plural e abstrata, em que o tema “visão” é apenas um propulsor para diversas compreensões de mundo, sejam elas de cunho artístico, filosófico, poético, científico ou social.
Saramago irá abordar, por exemplo, como surgiu a idéia para escrever Ensaio sobre a Cegueira, quando se perguntou como seria o mundo se todos fôssemos cegos. De acordo com sua reflexão, a resposta é que já somos, tendo em vista a total desordem que assola o mundo, o desafeto, a miséria etc.
Talvez seja disso que o filósofo esloveno Evgen Bavcar queira falar com suas fotografias. Bavcar se tornou cego após dois acidentes de guerra. As perguntas imediatas que qualquer um faria não são colocadas pelo filme, “pode um cego fotografar? qual é o valor artístico de um fotógrafo que não vê o que enquadra?”. O filme não pergunta mas mostra o fotógrafo em ação, fazendo fotografias e medindo com as mãos o foco, tateando o espaço entre a câmera e a modelo. Evgen Bavcar também não problematiza a questão, pelo contrário, se mostra tão surpreso quanto qualquer outro, falando que a primeira vez que revelou as fotografias feitas após a cegueira, não acreditou quando disseram que havia ali imagens. Mas há um determinado trecho que é revelador, quando Bavcar mostra as fotos que fez de sua sobrinha no campo. Enquanto ela corria com um sininho, ele podia seguir seus movimentos através do som. Ele explica que fotografou, na verdade, o barulho desse sino, que não aparece nas fotos. Assim, ele estaria fotografando o invisível.
Já Hermeto Pascoal revela que quando tinha 30 anos, chegou a querer ser cego temporariamente, para que assim pudesse melhor desenvolver sua percepção musical. O músico diz que a visão não se dá fisicamente, com os olhos. Ao contrário, a visão verdadeira seria a visão interior.
A questão da imaginação, uma outra leitura para essa questão da visão interior, exposta por Hermeto Pascoal, também é abordada no filme. A imaginação como alimentador da criação artística. Para o poeta Manoel de Barros, “a transfiguração é a coisa mais importante para o artista”. Manoel de Barros diz isso explicando que o modo como enxerga fisicamente o mundo não influencia seu trabalho. Sendo um poeta que reinventa a língua, ele julga que o entrevistador gostaria de ouvir dele algo diferenciado sobre sua maneira de ver. Mas ele é enfático dizendo que seu trabalho é sobre a palavra. E embora seus poemas pareçam tortos, sua visão não é.
Para organizar todas essas e outras idéias que são expostas ao longo de Janela da Alma, João Jardim e Walter Carvalho escolheram uma estrutura fragmentada para o documentário. Uma estrutura que possibilitasse organizar assuntos tratados pelos depoentes, agrupando-os em blocos temáticos. No entanto, o resultado final é muito mais poético e lírico do que essas linhas fazem crer. Isso porque a estrutura escolhida também deu vazão a interpretações metafóricas/imagéticas feitas pelo próprio documentário, não se limitando às discussões apresentadas pelos entrevistados, em sua maioria intelectuais.
Para intercalar entrevistas ou mesmo para sublinhar um sentimento ali exposto, a fotografia de Walter Carvalho busca imagens que (re)pensam o ato de ver. Esse é o sentido do primeiro plano do filme, quando saindo da tela preta, surgem imagens desfocadas que ao pouco entendemos ser de uma fogueira sendo alimentada em meio à escuridão. Uma imagem que remete à alegoria da Caverna de Platão, de uma sociedade de pessoas presas na ignorância, na ilusão de um mundo falso.
Em seguida, a segunda dessas imagens incorporadas ao filme é um plano em super detalhe da pele de uma mulher. A proximidade da lente é tal que o corpo torna-se quase algo abstrato, sendo reconhecido apenas após alguns segundos. E é interessante notar que sobre essa imagem surge um depoimento que explana sobre anjos mediadores, entidades que fazem a transição entre o mundo real e o mundo espiritual, duas faces de um universo que podem ou não ser encarados como verdadeiros, assim como aquela imagem de um corpo que, ao mesmo tempo, pode não sê-lo, dada sua abstração. Assim como pode ser a construção de uma sensualidade no extremo da intimidade ou, ao contrário, uma desconstrução do sensual no apelo do nu.
Este mesmo plano (ou outro semelhante?) irá retornar nos últimos minutos do filme, trazendo a tona uma reflexão sobre o que é realmente o “ver”. É como se os realizadores perguntassem se após todos os depoimentos e recortes feitos a partir do tema central, se aquela mesma imagem permanece com o significado inicial. Como Janela da Alma não se trata de um documentário de tese, a retomada desse plano é um repensar do próprio projeto e dos fins com ele alcançados. É, do mesmo modo, um retomar o início do filme e talvez afirmar que não há uma conclusão intelectual. Em outras palavras, que não há ali a defesa de uma tese.
Essa interpretação pode ser reforçada com a seqüência final, seqüência que junto a esses planos anteriormente analisados, podem ser tomados como momentos síntese do documentário. Integrados, podem ser tomados como a seqüência representativa do filme. A última seqüência são cenas de um parto e, embora possam parecer deslocadas do universo imagético até então explorado, a crueza das imagens (é um parto natural sendo filmado sem cortes) e as cenas seguintes, mostram que não. No fim, vê-se o recém-nascido abrindo os olhos e ali temos o primeiro contato visual da criança com o mundo. Novamente o filme vai recolocar as mesmas questões. Com essa imagem, a criança abrindo os olhos pela primeira vez, o documentário está reiniciando toda a discussão, está também mostrando a dor de ver, o quão traumático é para o recém-nascido abrir os olhos. E é esse ver (ou não ver) que norteou toda a discussão de Janela da Alma.
As outras imagens utilizadas durante o documentário são, em geral, tentativas de reinterpretar as disfunções do olho, tentativas de aproximar o espectador das elaborações feitas a partir da má visão que são acometidos os entrevistados. São imagens fora de foco ou imagens de paisagens tão desoladas que nada há ali para se contemplar. Essas imagens têm a função de fazer o espectador pensar o que é o belo, de problematizar – junto com os depoimentos – o que é o ver.
Se não fosse pelo tema proposto e pela escolhas de seus entrevistados, Janela da Alma talvez fosse um documentário burocrático. No entanto, a carga abstrata com que os depoentes exploram o assunto e as escolhas da montagem o transformaram num filme singular. Isso porque a estrutura de entrevistas fragmentadas em blocos temáticos, unidas a imagens de transição, é um recurso largamente utilizado pelo dito documentário expositivo. Mas não, o modo de representação escolhido é o reflexivo. É possível que João Jardim e Walter Carvalho não tenha tido outra escolha a partir do material que dispunham ao término das filmagens. Eles mesmos informaram que no início da montagem, transcreveram todas as entrevistas e fizeram um roteiro a partir do texto. No entanto, ficaram frustrados com andamento do projeto. Partiram, então, para escolhas mais poéticas, assumindo um material documental aberto e sensível.
É mais ou menos o que o poeta Antônio Cícero explica quando problematiza a expressão que dá o título do filme, cunhada pelo pintor renascentista Leonardo da Vinci, “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Para Cícero, o problema em questão é que se o olho é a janela da alma, há aí a necessidade de um outro olho para ver essa janela (que também é janela). E assim é necessário mais um olho e assim sucessivamente, até o infinito."
Aristeu Araujo
Originalmente escrito para a disciplina de Cinema Documentário da Universidade Federal Fluminense
http://quebra-de-eixo.blogspot.com/2006/06/janela-da-alma.html
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário