terça-feira, 7 de junho de 2011

afinal de contas sou um carpinteiro…


“ … Ignoro se sabem o que faço, julgo que têm uma ideia vaga. Há quem me trate por senhor Doutor e quem me trate por Sr. António. Prefiro senhor António: afinal de contas sou um carpinteiro…”


I –
não quero ser escritor – quero escrever. escrever como um carpinteiro – quero ser carpinteiro [como diz o lobo antunes]. quero escrever palavras com cheiro à resina. às colas. às pancadas do martelo. do serrote que vai e vem. do lápis que agarra à orelha todos os barulhos das palavras que aperfeiçoam o silêncio quando lidas – depois. depois deixo partir a arte de quem faz coisas com as mãos. onde compete o belo e o monstro – desta vez. talvez por encanto fugiu-me um pássaro pelos dedos. um pássaro gigantesco. com um bico pintado de sossego. no lugar dos olhos um arco-íris com mais de mil cores. as asas. são tão grandes que nem lhes sei escrever o tamanho. sei apenas que estão presas a rodas e nunca param de esbracejar – são umas asas diferentes. esbracejam em silêncio sobre rodas que só andam para a frente – são mesmo diferentes estas asas. deixam-me ficar confuso. nunca vi asas correrem com rodas ou talvez voarem com rodas. não sei. não sei mesmo. nunca as vi voar só esbracejam. mas também não me parece que seja importante para o pássaro voar e para o carpinteiro vê-lo voar. há ali um acordo escondido que faz desta uma história diferente – as palavras continuam-me a cair em silêncio. largo-as do mais alto que as mãos alcançam. talvez não seja assim muito alto. penso que sim. quero acreditar que seja um pouco mais alto do que imagino. quero ouvi-las a cair aos pés. aos meus pés. mas não. não. pelo caminho transformam-se em água e no chão. aonde mantenho os pés firmes. sorriem agora apenas lágrimas – nunca nenhuma palavra nascida dentro de mim fará barulho. quebrará este silêncio pedra. este silêncio dor. este silêncio que não voa. um silêncio que por ser silêncio ninguém ouve – percebo então que o pássaro que fugiu dos dedos. quando corre ou tenta voar procura apenas um novo silêncio. outro silêncio . um silêncio que nunca tenha sido magoado


II –
este pássaro não sossega. para trás e para a frente. e a vida do carpinteiro parada. parada em silêncio – este pássaro é maluco. doido. idiota. tem asas mas não quer voar. corre. como se correr significasse voar. nem lhe era necessário voar muito alto. bastava que voasse por cima de um livro. uma cadeira desocupada pelo momento. ou um quadro pendurado numa parede sem cor definida. geometricamente dividido. falo da tela. do sorriso da mona lisa feito por um artista que não podia morrer à fome. pintou o que lhe faltava – penso eu que também sinta falta de quem sorri. e quem sabe. digo eu ainda a pensar como se fosse um artista – depois de limpar os pincéis. atirou-se de uma ponte famosa de onde se atiravam artistas desiludidos – mas este pássaro não voava. talvez tivesse medo às alturas. e correr talvez o fizesse rir depois – não deixa de correr. corre preso àquelas rodas como se fosse livre da terra que o segura. talvez acredite na liberdade do homem-carpinteiro que o deixou escapar por entre os dedos – este carpinteiro é um homem. não. não. este homem é um carpinteiro porque dá vida à madeira. entende de madeiras. madeiras simples de pinho. daquele que se encontra em qualquer lugar de madeira. podia perceber de pau-santo. sucupira ou outra qualquer madeira nobre. mas não. só conhece o pinho – tem uma bouça com giestas. silvas. amoras. azevinhos. cogumelos e pinheiros bravos. muitos pinheiros bravos. alguns mais antigos do que ele. do tempo em que os animais falavam e as fadas apareciam a quem vive num silêncio magoado – este homem. este carpinteiro. quando não lhe apetece trabalhar é aqui que passa os dias. procura o pinheiro certo para uma ideia que ainda não apareceu. sabe que junto das suas mãos. em silêncio e sem a pressa do tempo. mais tarde ou mais cedo. sempre haverá um pássaro a fugir por entre os dedos. é por isso que gosta de ser carpinteiro. as mãos sempre fazem coisas que nunca imaginava possíveis – desta vez foi um pássaro gigantesco. diferente de todos os pássaros que já lhe voaram das mãos. este gosta de correr. só a correr é capaz de bater as asas – e lá vai ele. corre. corre. as asas sempre a bater vida. vida em silêncio. asa para cima. asa para baixo. asa para cima. asa para baixo. como se acenassem. talvez esta seja a sua própria forma de voar. voar para acenar. dizer adeus sem nunca sair da oficina de sonhos do seu criador – e o carpinteiro amarrado àquelas rodas. e a vida a correr como se também ele se transformasse num pássaro e as asas para cima e para baixo. cada vez com mais força. há alturas em que é capaz de jurar que vai levantar voo com o seu pássaro – não. nunca deixará a terra que o segura. nasceu amarrado a ela e é nela que se sente bem. afinal de contas é carpinteiro e os carpinteiros não voam.


António Lobo Antunes


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